Danielson Ripardo Nascimento1; Flávia Lima Santos2
Resumo
Relato de caso de uma jovem de 21 anos picada por Bothrops jararaca na base do hálux esquerdo, em zona rural. Apresentou edema, equimose e sintomas sistêmicos leves. Recebeu soroterapia (4-8 ampolas) e suporte clínico adequado, sem alterações no coagulograma. Após a alta, cerca de 3 dias após o acidente, desenvolveu necrose tardia no local da picada, necessitando de debridamento posteriormente. O caso reforça a importância do diagnóstico precoce, administração do soro e monitoramento contínuo para evitar complicações tardias.
INTRODUÇÃO
O acidente botrópico é causado pela picada de serpentes do gênero Bothrops amplamente distribuídas nas regiões tropicais da América Latina1. Essas serpentes são responsáveis pela maioria dos acidentes ofídicos no Brasil2. As características de envenenamento variam desde manifestações locais, como dor, edema e equimose2, até sinais sistêmicos como coagulopatias1, hipotensão11 e em casos graves, insuficiência renal aguda1. A ação do veneno envolve a liberação de metaloproteinases que causam a destruição dos tecidos e alteração da coagulação sanguínea1. O manejo adequado é crucial para o sucesso do tratamento3, minimizando complicações graves como hemorragias e necrose local2.
Este relato descreve o manejo clínico de uma paciente vítima de picada de jararaca, com destaque para a evolução da recuperação pós-alta hospitalar. O objetivo do caso é ilustrar a importância da intervenção precoce, do monitoramento contínuo e do tratamento adequado para garantir a recuperação e evitar complicações graves.
DECLARAÇÃO ÉTICA
O consentimento informado foi obtido por escrito da paciente para a publicação deste relato de caso, garantindo que as informações permanecem anônimas e preservando sua privacidade.
RELATO DO CASO
Uma paciente de 21 anos, moradora da zona rural e sem antecedentes médicos relevantes, foi atendida em uma unidade de saúde no dia 14 de outubro de 2024, às 21 horas(horário de Brasília), após ser picada por uma serpente Bothrops jararaca na base do hálux do pé esquerdo, cerca de 45 minutos antes da chegada ao serviço.
Sintomatologia e evolução:
Inicialmente apresentou:
Sinais locais: edema progressivo, equimose e sangramento no local da picada.
Sinais sistêmicos: palidez gengival, xerostomia e queda de pressão arterial.
Durante a internação apresentou:
Intensa dor descrita como "queimação", que se espalhava para a região tibial.
Exames laboratoriais iniciais:
O primeiro coagulograma, realizado até 3 horas após o acidente, não apresentou sinais de alteração.
O segundo coagulograma, realizado em até 9 horas após o acidente, não apresentou sinais de alteração.
Conduta clínica:
1. Soroterapia específica: Este caso foi considerado de moderada gravidade, e a administração de soro antibotrópico variou de 4 a 8 ampolas, por via intravenosa, em até 4 horas após o acidente, com monitorização rigorosa. A dose exata administrada não constava nos registros consultados, sendo essa faixa utilizada conforme a avaliação clínica de gravidade moderada.
2. Suporte clínico:
Anti-inflamação inicial com dexametasona.
Hidratação intravenosa com solução salina para prevenir insuficiência renal.
Analgesia com dipirona.
Anti-inflamação complementar com cetoprofeno.
3. Monitorização contínua: avaliação frequente de sinais específicos, função renal e parâmetros de coagulação.
4. Após a alta, iniciou-se a administração de amoxicilina e clavulanato de potássio por uma semana, com o objetivo de prevenir infecções bacterianas secundárias.
Evolução durante a internação:
Durante a internação,após a administração de dexametasona e do soro antibotrópico, o edema local se estabilizou e os sinais de coagulopatia se mantiveram negativos. Apesar da soroterapia, a paciente indicou sentir uma intensa dor descrita como "queimação" na região tibial do membro inferior esquerdo, a qual foi tratada com dipirona e cetoprofeno, ambos intravenosos. A paciente recebeu alta hospitalar em torno de 21 horas após a internação, após os coagulogramas realizados durante a internação não apresentaram alterações significativas. Por fim, foram realizadas recomendações de observação e repouso para a paciente.
Evolução pós-alta hospitalar:
Após a alta, iniciou-se a antibioticoterapia e, cerca de 3 dias após o acidente, surgiram bolhas no local da picada, que aumentaram de tamanho e evoluíram para necrose extensa nas semanas seguintes, necessitando de debridamento. O acompanhamento pós-alta foi realizado com trocas diárias de gases e limpeza da área afetada.
DISCUSSÃO
Este caso ilustra as manifestações típicas de acidentes botrópicos e ressalta a importância do diagnóstico precoce e da administração do soro antiofídico. A ausência inicial de coagulopatia, evidenciada pelos coagulogramas sem alterações, pode sugerir diferentes cenários clínicos, incluindo a menor quantidade de veneno inoculado, uma resposta individual menos intensa ao envenenamento ou um efeito menos hemorrágico do veneno nesse caso específico.
Silva et al.2 relatam que, em muitos acidentes botrópicos, os sintomas iniciais podem se restringir a manifestações locais, como dor e edema, com alterações hematológicas surgindo de maneira mais gradual. No presente caso, a normalidade dos coagulogramas iniciais é compatível com esse padrão, destacando a necessidade de monitoramento contínuo. Por outro lado, Alves et al.1 documentaram situações em que o veneno da Bothrops jararaca leva a uma rápida evolução de coagulopatias e insuficiência renal aguda, mesmo com a administração precoce de soroterapia. Isso ressalta a importância da avaliação clínica frequente e da repetição de exames laboratoriais.
A coagulopatia em acidentes botrópicos pode se manifestar de forma tardia, tornando-se mais evidente após algumas horas ou dias. Essa variabilidade reforça a importância do acompanhamento prolongado. Além disso, fatores como o estado de saúde prévio do paciente, presença de comorbidades e características genéticas individuais podem influenciar a severidade do envenenamento e o prognóstico clínico.
Estudos como o de Albuquerque et al.4 apontam que a hidratação adequada é essencial para prevenir complicações renais, sendo um aspecto fundamental do manejo clínico. Já Ralph et al.3 destacam a relevância do suporte terapêutico abrangente na redução da morbidade associada a esses acidentes, assegurando melhores desfechos clínicos.
A troca de experiências entre profissionais e a disseminação de dados clínicos são essenciais para aprimorar protocolos de atendimento e tratamento em situações de emergência, especialmente em áreas rurais, onde os acidentes ofídicos são mais frequentes. Kasturiratne et al.5 enfatizam a importância do acompanhamento pós- alta devido à possibilidade de complicações tardias, como necrose e alterações hematológicas progressivas. Essas complicações podem surgir mesmo quando o tratamento inicial foi adequado, reforçando a necessidade de vigilância prolongada.
Assim, a análise das manifestações clínicas e da evolução dos envenenamentos por Bothrops jararaca contribui para o desenvolvimento de estratégias clínicas mais eficazes, tanto no tratamento imediato quanto na prevenção de complicações tardias. Uma limitação deste relato é a ausência de uma amostra maior para análise estatística, impossibilitando a generalização das observações para todos os casos de envenenamento por Bothrops jararaca. Entretanto, ele reforça a necessidade de investigação contínua sobre os efeitos do veneno e os fatores que influenciam sua ação, contribuindo para o aprimoramento dos protocolos de atendimento e da prevenção de complicações.
CONCLUSÃO
O manejo rápido e eficaz do acidente botrópico, com ênfase na soroterapia e no suporte clínico, pode prevenir complicações graves e garantir uma recuperação satisfatória. Este caso reforça a necessidade de capacitação de profissionais de saúde nas regiões endêmicas.
CONFLITO DE INTERESSES
Os autores declaram não haver conflito de interesses relacionado a este manuscrito.
REFERÊNCIAS
1. Alves EC, Sachett JAG, Sampaio VS, Sousa JDB, Oliveira SS, Nascimento EFD, Santos ADS, da Silva IM, da Silva AMM, Wen FH, Colombini M, de Lacerda MVG, Monteiro WM, Ferreira LCL. Predicting acute renal failure in Bothrops snakebite patients in a tertiary reference center, Western Brazilian Amazon. PLoS One. 2018;13(8):e0202361.
2. Silva FS, Ibiapina HNS, Neves JCF, Coelho KF, Barbosa FBA, Lacerda MVG, Sachett JAG, Malheiro A, Monteiro WM, Costa AG. Severe tissue complications in patients of Bothrops snakebite at a tertiary health unit in the Brazilian Amazon: clinical characteristics and associated factors. Rev Soc Bras Med Trop. 2021;54:e20200640.
3. Ralph R, Faiz MA, Sharma SK, Ribeiro I, Chappuis F. Managing snakebite. BMJ. 2022;376:e067461.
4. Albuquerque PLMM, Paiva JHHGL, Martins AMC, Meneses GC, da Silva GB, Buckley N, Daher EF. Clinical assessment and pathophysiology of Bothrops venom-related acute kidney injury: a scoping review. J Venom Anim Toxins Incl Trop Dis. 2020;26:e20190076.
5. Kasturiratne A, Lalloo DG, de Silva HJ. Chronic health effects and cost of snakebite. Toxicon X. 2021;9-10:100074.