Luiz Henrique Horta Hargreaves
Resumo
O atendimento de emergência pré-hospitalar nos Estados Unidos da América, teve início no final da década de 1960 e desde então, as áreas e formas de atuação das diferentes categorias profissionais envolvidas, assim como os modelos de assistência estão bem consolidados. Cada estado possui autonomia para definir e implementar seus serviços de assistência pré-hospitalar, seguindo modelo nacional de práticas de serviços de emergência médica, diante da inexistência de um sistema único centralizado. Tradicionalmente o chamado modelo anglo-americano de atendimento pré-hospitalar é caracterizado pelo chamado “load and go”, onde o tempo de estabilização e transporte do paciente crítico a um centro especializado deve ser priorizado. Este artigo apresenta uma visão geral sobre a formação dos profissionais que atuam no pré-hospitalar, os modelos de assistência e dada a diversidade de legislação sobre o tema nos estados, é apresentado o caso do Condado de Orange, na Flórida.
INTRODUÇÃO
O atendimento de emergência médica prehospitalar nos Estados Unidos, em sua concepção moderna e estruturada surgiu no final da década de 1960 e nos primeiros anos da década de 1970, a partir de um estudo que alertava sobre o número de mortos em acidentes de tráfego naquele país, e os riscos de morbi-mortalidade pela falta de uma assistência profissionalizada em ambiente extrahospitalar 1. Ao mesmo tempo já havia também a percepção da necessidade de medicos especialistas em emergência, dado o número crescent de pacientes que chegavam aos hospitais e requeriam cuidado especializado. Até então, os serviços de atendimento prehospitalar se resumiam ao transporte de vítimas em ambulâncias muitas vezes improvisadas. Diversas outras experiências ocorreram em campos de batalha, incluindo na Guerra Civil americana, mas nada era comparado à proposta de modernização e estruturação do Sistema de Emergência Médica (EMS) como o que foi implementado nos primeiros anos da década de 1970; ano em que foi criado o primeiro programa de residencia médica em Medicina de Emergência, na Universidade de Cincinnati 2. Havia também a percepção da necessidade de treinamento dos bombeiros, policiais e tripulantes de ambulâncias, e nesse período que compreende o final dos anos 60 e o os primeiros anos da década de 1970, surgiram os primeiros serviços de paramédicos, o número “911” foi designado para emergências, os curriculos de cursos de formação de técnicos de emergência médica foram elaborados e a Lei de Sistemas de Emergência Médica (EMS Systems Act) foi aprovada em 1973 3. Com essa lei, 300 serviços de emergência médica receberam verba específica para suas atividades, a chamada “estrela da vida” (star of life) que identifica os serviços de emergência foi criada e projetos em mais de 30 estados foram estabelecidos. Em 1979, a Medicina de Emergência foi reconhecida como especialidade médica. Atualmente há cerca de 49 mil médicos de emergência nos Estados Unidos 4, com cerca de 265,000 postos de trabalho para técnicos de emergência médica e paramédicos 5, além de uma estimativa de cerca de 167.000 profissionais de enfermagem atuando na área de emergência 6.
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Os Estados Unidos possuem 50 estados, um Distrito Federal (onde está a capital, Washington D.C.), cinco territórios e nove ilhas que não são permanentemente habitadas, com uma população de aproximandamente 330 milhões de habitantes 7. No que diz respeito à formação e licenças para atuação professional na área de saúde, cada estado e território tem suas próprias legislações e regras. De um modo geral, o Sistema de atendimento de emergência pré-hospitalar é realizado essencialmente por socorristas (Emergency Medical Responder-EMR), técnicos de emergência médica (Emergency Medical Technicians-EMT), técnicos de emergência médica avançada, e paramédicos (EMT-P), de acordo com as diretrizes do National EMS Scope of Practice Model 8. Os paramédicos seguem protocolos de atendimento e em geral, sempre que necessário, podem acionar o Controle Médico, bem como o medico do hospital de destino, para autorização de procedimentos não previstos nos protocolos, mas que estejam dentro do escopo legal de suas práticas profissionais. Médicos e enfermeiros usualmente não participam do atendimento pré-hospitalar no local do incidente, exceto em circunstâncias que envolvem múltiplas vítimas, ou em eventos de grande porte, ou ainda na remoção de pacientes críticos em unidades especializadas e transporte aeromédico, o que usualmente é realizado por enfermeiros de emergência. Após dois anos de experiência trabalhando em emergências, o enfermeiro deve ser aprovado em uma prova nacional (Certified Emergency Nurse) para ser reconhecido como Enfermeiro de Emergência. Enfermeiros que concluem mestrado ou doutorado em Nurse Practioner e são aprovados em um exame nacional (ENP) podem atuar como enfermeiros avançados em emergência. Os critérios para elegibilidade para realização do ENP são bastante rigorosos e além da formação acadêmica requerem pelo menos duas mil horas de treinamento supervisionado em emergência, dentre outros requisitos. Os enfermeiros avançados (NP) podem diagnosticar, prescrever e realizar diversos procedimentos nos serviços de emergência, de acordo com as normas e regulamentos de cada estado. Há ainda outras áreas de atuação para o enfermeiro que requerem treinamento especializado, certificações e prática adicional, como é o caso dos enfermeiros de voo (Flight Nurse) que em geral são os profissionais que tripulam as aeronaves para transporte de pacientes críticos 9. Os técnicos de emergência médica (EMT) possuem formação bastante diversificada quando comparamos cada estado, sobretudo no que diz respeito à amplitude de atuação. De uma forma geral, os EMTs no nível mais básico, devem ser aprovados em curso teórico-prático que inclui estágio em serviços de emergência hospitalar, unidades de suporte básico de vida no atendimento pré-hospitalar e devem ser aprovados em um teste teórico-prático. A duração dos cursos é variável e pode ser oferecida por universidades ou por escolas especializadas. A licença para atuar como paramédicos requer licença como técnico de emergência médica (EMT), certificado em Suporte Avançado de Vida (ACLS) e ser aprovado em curso e teste teórico-prático. Na Flórida por exemplo, é ainda requerida a aprovação e licenciamento como paramédico nacionalmente registrado (NPR). Todos certificados e licenciamentos precisam ser renovados periodicamente por diferentes processos. Alguns estados possuem licenças e certificação para Emergency Medical Responder, que seria o equivalente a socorristas, assim como há também locais que reconhecem licenças para níveis intermediário e avançado como técnicos de emergência médica. Na Flórida, apenas os EMTs e Paramédicos atuam especificamente no atendimento pré-hospitalar. Médicos, dentistas, enfermeiros e medicos assistentes (categoria professional não existente no Brasil) podem se candidatar para atuar como paramédicos desde que aprovados nas provas teórico-práticas, dentre outros requisitos 10. Os paramédicos podem realizar uma série de procedimentos, inclusive alguns invasivos e administrar medicamentos de acordo com os protocolos de onde atua. Há um curriculo nacional para os cursos de EMT e paramédicos e o tempo geral de formação desses profissionais é variável, com duração media de 06 meses para os EMTs enquanto que os paramédicos requerem treinamento que pode durar dois anos, com 1.200 a 1.800 horas de estudos teórico-práticos. Alguns programas exigem que os paramédicos tenham pelo menos seis meses de prática como EMT 11. Todos profissionais que atuam no pré-hospitalar precisam ter concluido curso de formação (treinamento formal), terem sido certificados (aprovados em prova de habilidades e conhecimento), licenciados (cumpriram os requisitos legais para poder atuar no estado) e credenciados (foram autorizados pelo Diretor Médico para exercer suas funções naquele local) para poder atuar no atendimento pré-hospitalar 8.
FUNCIONAMENTO DO SISTEMA
Há diferentes modelos de atendimento pré-hospitalar nos Estados Unidos. Nas cidades com maior população é comum encontrarmos sistemas operados pelas cidades e também pelos condados, que são financiados pelo governo local. Em outros locais, encontramos modelos onde o atendimento é terceirizado para serviços privados que são reembolsados pelo governo ou em modelos híbridos. Há também sistemas que são operados por serviços voluntários, sobretudo, em cidades onde a arrecadação de impostos não é suficiente para manter o sistema funcionando8. Não existe um modelo nacional governamental de assistência nos moldes do SAMU do Brasil. Os modelos operados pelos governos locais, podem estar a cargo dos bombeiros, da polícia, baseados em hospitais, como também podem ser terceirizados, não havendo uma regulamentação nacional nesse sentido 8. Cerca de 67% dos bombeiros nos Estados Unidos, são voluntários. Não há diferenças de treinamento e certificação entre bombeiros, EMTs e paramédicos voluntários e os remunerados. Nacionalmente, 38% dos departamentos de bombeiros não realizam APH e 17% realizam suporte avançado de vida 12. Utilizaremos o modelo da Flórida como exemplificação do funcionamento do Sistema, uma vez, que pode haver muitas variações dentre os estados. A Flórida possui 67 condados, que são unidades administrativas, e cada condado pode incluir diversas cidades. No condado de Orange, na Flórida, onde estão localizadas cidades bem conhecidas, como Orlando, embora a população de residentes seja de cerca de 1,3 milhões de residentes, a área recebe em média mais de 50 milhões de turistas por ano. Neste condado, o atendimento pré-hospitalar é primariamente prestado pelos bombeiros.No modelo adotado, a cidade de Orlando (287 mil habitantes) possui um departamento de bombeiros com 17 estações distribuidas em diferentes pontos da cidade. Nos locais onde as cidades não possuem seus próprios departamentos de bombeiros, os bombeiros dos condados atuam. No condado de Orange, há 83 estações e de bombeiros, das quais 43 pertecem ao departamento de bombeiros do condado, além das municiapais e de outras regiões, incluindo Reed Creek, que é responsável pelos atendimentos de emergência médica dos parques e resorts da Disney World 13. As chamadas de emergência para situações médicas, de incêndio/resgate e policiais, ocorrem através de um número único (911). Nos casos de transporte interhospitalar, os casos são direcionados para uma empresa privada de ambulâncias de suporte básico e avançado de vida (Rural Metro) que pode também ser acionada em desastres ou em situações onde os bombeiros estejam indisponíveis para atender. O condado, assim como a cidade de Orlando, a Universidade da Flórida Central, e muitas instituições humanitárias e privadas, utilizam o Sistema de Comando de Incidentes em todas as suas operações e possuem estrutura próprias permanentes de Centros de Operações de Emergência (EOC). Durante o ano, na ausência de eventos críticos que requeiram o acionamento do EOC, esses locais são utilizados para o monitoramento de situações de risco potencial, assim como para treinamentos que são oferecidos para organizações públicas, privadas e voluntárias. Na ocorrência de desastres, bem como na decretação de estado de emergência, abrigos são abertos em diferentes pontos da cidade, onde muitos são operados e administrados pela Cruz Vermelha Americana. Diversas outras organizações voluntárias e humanitárias participam desse processo de preparação, resposta e reconstrução sempre que necessário. O condado de Orange administra o programa Pulse Point, através do qual, a central do “911” informa a todos profissionais certificados em ressuscitação cardiopulmar (RCP) sobre uma parada cardíaca nas imediações de onde residem ou trabalham, de tal forma que possam chegar rápido ao local para iniciar precocemente o socorro à vítima 14. Os bombeiros também realizam diversos treinamentos voltados para a população, assim como a Cruz Vermelha que oferece certificações de primeiros socorros e administra um programa (Pillowcase) nas escolas de Ensino Básico, orientações para preparação para desastres, dentre outras iniciativas 15. Um programa federal provê fundos e treinamento para que as cidades possuam equipes de voluntários treinados em primeiros socorros, controle de público e resposta em desastres, em nível local. Essas equipes são chamadas de Community Emergency Response Teams (CERT) e atuam em auxílio aos departamentos de bombeiros em eventos de grande porte e nas primeiras 72h após a ocorrência de desastres 16. Todos atendimentos de emergência são regulados e os pacientes são transportados para hospitais e departamentos de emergência conforme a gravidade e proximidade do local do incidente. O estado da Flórida possui 27 centros de trauma, dos quais, 09 são classificados como trauma I, 14 são Trauma II, 02 são Trauma II e Pediático e 02 são exclusivamente Pediátricos 17. O condado de Orange possui um Trauma I, com 33 leitos para trauma pediátrico, com 04 salas de reanimação pediátrica e outras seis para adultos, além de unidade de terapia intensive e remoção aeromédica 18. O Medical Reserve Corps (Corpo Médico da Reserva) é outro programa federal de voluntários que cadastra e treina profissionais de saúde e de apoio, para atuarem de forma voluntária em eventos de grande porte e desastres, na assistência médica de emergência 19. Há diversos programas de preparação para a comunidade, o que inclui as escolas, no atendimento de primeiros socorros e resposta em desastres.
CONCLUSÃO
O atendimento de emergência pré-hospitalar nos Estados Unidos não segue um único modelo, mas através do conceito de rápida estabilização e transporte para o hospital nos casos graves, e seguindo o Sistema de Comando de Incidentes, cada estado, condado e cidades possui seus próprios modelos e sistemas de resposta a emergências e desastres. Não há tampouco, um serviço federal voltado para o atendimento de emergências médicas e o atendimento de uma forma geral é realizado por técnicos de emergência médica e paramédicos. Em casos selecionados e específicos, enfermeiros e médicos podem atuar na cena dos incidentes. É notória a participação de profissionais voluntários no Sistema, que possuem a mesma capacitação e responsabilidades que os remunerados, além da existência de diversos programas envolvendo a preparação da comunidade. Dada a diversidade de sistemas de emergência pré-hospitalar nos estados, foi apresentado o sistema de emergência médica do condado de Orange, na Flórida.
REFERÊNCIAS
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3. Erich J. (2017). Timeline of Modern American EMS. Disponível em https://www.emsworld.com/article/219388/timeline-modern-american-ems
4. Bennett CL, Sullivan AF, Ginde AA, Rogers J, Espinola JA, Clay CE, Camargo CA Jr. National Study of the Emergency Physician Workforce, 2020. Ann Emerg Med. 2020 Dec;76(6):695-708. doi: 10.1016/j.annemergmed.2020.06.039. Epub 2020 Aug 1. PMID: 32747085.
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6. Thew J. (2019). The State of the Emergency Nurse Workforce. Disponível em https://www.healthleadersmedia.com/nursing/state-emergency-nurse-workforce
7. The United States Census Bureau (2021). U.S. and World Population. Disponível em https://www.census.gov/popclock/
8. National Highway Traffic Safety Administration (2019). National EMS Scope of Practice Model. Disponivel em https://www.ems.gov/pdf/National_EMS_Scope_of_Practice_Model_2019.pdf
9. Emergency Nurses Association. Emergency Nursing Certification (n.d.). Disponível em https://www.ena.org/docs/default-source/resource-library/practice-resources/position-statements/encertification.pdf?sfvrsn=b3563eb6_14
10. Florida Health Department (2021). Emergency Medical Technicians and Paramedics. Disponível em http://www.floridahealth.gov/licensing-and-regulation/emt-paramedics/index.html
11. EMS 1. (2021).What is the job of a paramedic and what are the requirements for certification?. Disponível em https://www.ems1.com/ems-products/education/articles/what-is-the-job-of-a-paramedic-and-what-are-the-requirements-for-certification-SoHHGkJ2os1h1FiH/
12. Evarts B & Stein G (2020). US Fire Department Profile 2018. Disponível em https://www.nfpa.org/-/media/Files/News-and-Research/Fire-statistics-and-reports/Emergency-responders/osfdprofile.pdf
13. Orange County Fire Department (2018). Orange County Fire Rescue 2017/2018 Annual Report. Disponível em https://www.orangecountyfl.net/Portals/0/Library/Emergency-Safety/docs/OCFRD%20FY2017-2018.pdf
14. Orange County Government Florida. Pulse Point Response. Disponível em https://www.orangecountyfl.net/Home/NewslettersAlerts/PulsePoint.aspx#.YLwniJNKjdA
15. American Red Cross. The Pillowcase Project. Disponível em https://www.redcross.org/get-help/how-to-prepare-for-emergencies/teaching-kids-about-emergency-preparedness/pillowcase-project.html
16. Federal Emergency Management Agency (2019). CERT Basic Training. Disponível em https://www.ready.gov/sites/default/files/2019.CERT_.Basic_.PM_FINAL_508c.pdf
17. Florida Health Department. Florida Trauma Centers. Disponível em http://www.floridahealth.gov/licensing-and-regulation/trauma-system/_documents/traumacenterlisting2018.pdf
18. Orlando Health (2021). Level One Trauma Center.Disponível em https://www.orlandohealth.com/services-and-specialties/emergency-and-trauma-care/level-one-trauma-center
19. Medical Reserve Corps. About the Medical Reserve Corps. Disponível em https://mrc.hhs.gov/pageViewFldr/About