Iratan Bezerra de Sabóia1,2; Sâmia Karine Moraes Ribeiro3
Resumo
O presente artigo trata sobre a implantação de um serviço de psicologia na residência em medicina de emergência em 2017. Objetiva-se com o texto apresentar as etapas de implantação e o protocolo final de trabalho que vem se mostrando eficiente nesses quatro anos de trabalho. As atividades do serviço foram iniciadas com um diagnóstico e proposição de trabalho para a coordenação da residência, e com sua implementação passou a executar as seguintes atividades: Diagnóstico da demanda de trabalho, atividades em grupo, escuta psicológica individualizada com possíveis encaminhamentos, aplicação de instrumentos de avaliação de vulnerabilidade ao estresse, grupos informativos, reuniões com os preceptores, reuniões com a coordenação e setor administrativo. As atividades desenvolvidas surtiram resultado na melhoria do funcionamento da residência e, principalmente, no manejo do estresse e no ganho em saúde mental por parte dos residentes.
INTRODUÇÃO
A medicina de emergência é uma especialidade recente no Brasil e mesmo já contando com residências dedicadas a área desde 1996, no Rio Grande do Sul e 2008 no Ceará, seu nascimento se deu por meio de dois marcos: o reconhecimento da especialidade em 2013 pelo Conselho Federal de Medicina e com a criação da especialidade pelo Conselho Científico de Especialidades da Associação Médica Brasileira em 2015 (ABRAMED, 2021).
Com efeito, a demanda por profissionais capacitados especificamente para essa atuação cresceu e, proporcionalmente, a procura pelo locus de formação do médico emergencista, a residência, também. Ano a ano as seleções contaram com um número crescente de candidatos o que aponta para uma apropriação dos espaços profissionais por médicos com melhor capacitação, mas também para uma necessidade de maior e melhor estruturação das residências em Medicina de Emergência para atender essa demanda.
Em 2017 a coordenação da Residência de Medicina de Emergência decide fundar um Serviço de Psicologia com o objetivo de dar suporte aos residentes, aos preceptores e à coordenação.
Esse texto se constitui, assim, como um relato de experiência feito a partir da implantação desse Serviço de Psicologia na Residência de Medicina de Emergência do Ceará. Desta forma objetivamos expor os passos iniciais que constituíram essa empreitada pioneira no Brasil demarcando as atividades, as dificuldades e os caminhos que esse trabalho trilhou a fim de registar o processo e a proposta de atuação para que no futuro outras residências possam desenvolver um trabalho semelhante.
A REALIDADE DAS RESIDÊNCIAS MÉDICAS E SEUS IMPACTOS NA SAÚDE MENTAL
Para que possamos traçar os motivos que levaram a coordenação da residência a buscar a implantação de um serviço como o que aqui propomos é necessário admitir o quadro geral dos fatores psicológicos implicados nas residências médicas.
Do ponto de vista psicológico, o residente deve aprender:
Lidar com sentimentos de vulnerabilidade;
Fazer um balanço entre o desejo de cuidar e o desejo de curar;
Lidar com sentimentos de desamparo em relação ao sistema assistencial; e,
Estabelecer os limites de sua identidade pessoal e profissional.
Nesse contexto surgem três categorias de estresse presente na Residência Médica: o estresse profissional, o estresse situacional e o estresse pessoal. Algumas situações de vulnerabilização ao estresse nessas categorias são (Herzog, 1984; Bing-You, 1993; Rudner, 1985; Nogueira–Martins, 1994):
Estresse profissional:
Administrar o peso da responsabilidade profissional;
Manejo com o paciente difícil;
Gerenciar o volume de conhecimento;
Supervisionar estudantes e residentes mais jovens.
Estresse situacional:
Privações de sono;
Excessiva carga assistencial;
Fadiga;
Excesso de trabalho administrativo.
Problemas relativos à qualidade do ensino e ao ambiente educacional;
Estresse pessoal:
Vinculado às características individuais e situações pessoais;
Vulnerabilidades psicológicas;
Situação socioeconômica;
Problemas familiares.
Nesse contexto podemos destacar a morbidade geral associada a: relação entre privação do sono e distúrbios cognitivos, comportamentos aditivos (abuso de álcool e drogas); sofrimento nas relações interpessoais, entre elas divórcio e ruptura de relações afetivas, manifestações psicopatológicas tais como ansiedade, depressão e síndrome de Burnout, podendo chegar ao suicídio; e disfunções profissionais, que podem se expressar como insatisfação no trabalho, afastamentos e licenças, erros, excesso ou falta de confiança, ceticismo, perda de compaixão.
O tema, apesar de relevante, tem tido pouco espaço nas pesquisas, principalmente no Brasil. Nos EUA, Bing-You (1993) pesquisou situações geradoras de ansiedade referente às reações psicológicas vinculadas à tarefa assistencial. Utilizou como método um questionário aplicado em 35 residentes no início do R1 e obteve as seguintes atividades (em ordem decrescente):
Atendimento de PCR;
Ser acusado de erro profissional;
Conversar com pacientes terminais;
Não conseguir administrar o tempo;
Contrair infecções dos pacientes;
Apresentar casos nas visitas;
Ensinar aos estudantes;
Perguntas difíceis dos pacientes;
Interagir com o corpo de enfermagem;
Lidar com pacientes alcoolizados e hostis.
No Brasil, em estudo realizado por Nogueira–Martins (1994), as principais fontes de estresse apresentadas pelos residentes foram:
Medo de cometer erros;
Fadiga, cansaço;
Falta de orientação;
Estar constantemente sob pressão;
Plantão noturno;
Excessivo controle por parte dos supervisores;
Lidar com exigências internas (“ser um médico que não falha”);
Falta de tempo para lazer, família, amigos, necessidades pessoais.
Esses estudos já dão um norte por onde seguir ao trabalhar aspectos psicológicos dos residentes. Ainda nessa direção Nogueira–Martins (1994) traça uma sequência previsível de fases ou estágios emocionais pelos quais passa o residente no seu primeiro ano de residência, sendo elas: excitação antecipatória; insegurança; depressão recorrente; sentimentos de competência, e; certa elação.
Desenvolvendo um estudo longitudinal, o autor descreveu assim os principais aspectos psicológicos dos residentes divididos por ano. No R1 destaca-se: Estágio inicial de excitação (1 mês, em média); Período de insegurança (2 meses, em média); Fase de depressão – se mostra tanto mais intensa quanto mais estiverem atuando os seguintes fatores: sobrecarga de trabalho, privação do sono e falta de apoio emocional institucional e/ou social.
Entre o 4º e 6º mês de treinamento, surge o período de tédio e desinteresse, muitas vezes, realiza as tarefas de maneira automática. Nova fase de depressão – mais intensa que a fase depressiva anterior e ocorre, em média, no 8º mês do treinamento, a rotina é percebida como algo insuportável e o trabalho parece sem fim. Gradativamente, o residente entra num período de altivez, com o reconhecimento de conquistas e realizações, o que pode levar a um excesso de confiança.
Fase de autoconfiança e competência profissional – sente-se seguro em tomar as decisões quanto ao tratamento dos pacientes, bem como ensinar e supervisionar estudantes. Embora essas fases estejam presentes de forma mais evidente no primeiro ano de residência, uma ampla gama de sensações positivas, gratificantes, negativas, frustrantes acompanha todos os momentos do treinamento. A literatura aponta o 8º mês como o mais crítico.
O R2 tem como principal característica ser menos tumultuado do que o R1 e mais estressante que o R3, e o R3 é mais estável e gratificante, apresentando resolução das dificuldades adaptativas associadas ao treinamento. É comum o sentimento de satisfação com a decisão de ser médico e se sentem profissionalmente competentes.
O SERVIÇO DE PSICOLOGIA
O trabalho do Serviço de Psicologia na Residência da Medicina de Emergência do Ceará teve seu início no ano de 2017 a partir da solicitação da coordenação para que os residentes fossem acompanhados principalmente em relação ao estresse e síndromes associadas. Tomando como base a literatura que aponta como principais fatores estressores: Fontes de estresse vinculados ao treinamento; Pressão do tempo; Falta de tempo para a família, para o lazer e para as necessidades pessoais; Sensação de fazer muitas coisas ao mesmo tempo; Fadiga; Privação do sono; Sobrecarga horária; Plantões; Falta de autoconfiança; Medo de cometer erros; e, Preocupações quanto à falta de conhecimento médico para proporcionar cuidado adequado aos pacientes iniciamos o trabalho pelo diagnóstico do grupo de residentes.
Apresentaremos a seguir os passos para a implantação do serviço e suas bases de atuação, tomando como base o ciclo anual.
INÍCIO
Após a primeira reunião com a coordenação e preceptores listamos suas principais observações sobre a residência e os problemas que conseguiam observar no processo de aprendizagem dos residentes. Na sequência realizamos uma reunião coletiva com os residentes para escutar deles suas demandas, bem como o ponto de vista do grupo quanto ao seu percurso. Estabelecemos o sigilo profissional como a base do acordo de trabalho e buscamos estabelecer um canal de comunicação baseado na abertura da escuta e acolhimento das demandas.
O terceiro passo foi escutar o setor administrativo da residência, suas impressões e demandas quanto ao seu trabalho como facilitadores dos processos de funcionamento da residência.
No primeiro contato identificamos o grupo dos residentes com grande demanda, pois as falas davam conta de um alto nível de estresse profissional, situacional e pessoal. As queixas iam ao encontro do que a literatura apontava e tinham como foco: problemas com o tempo, sobrecarga de trabalho (ambas se subdividiam em outras queixas) e estrutura didático/pedagógica; a forte demanda do grupo transformou o encontro antes previsto para uma hora em quase duas horas de trabalho.
Com base nas informações colhidas elaboramos um breve relatório com um diagnóstico do possível problema e estratégias de atuação para iniciarmos a intervenção, que descreveremos a seguir dividida por atividade e método.
OS RESIDENTES
Uma vez que o foco eram os residentes, passamos a dividir o trabalho em quatro atividades diferentes: escuta em grupo, escuta psicológica individualizada com possíveis encaminhamentos, aplicação de instrumentos de avaliação de vulnerabilidade ao estresse e grupos informativos. Os encontros com os residentes acontecem uma vez por semana com a duração de uma hora.
A primeira parte do trabalho consiste sempre (e isso se repete a cada ano) fixar as bases do trabalho com todos os residentes. Conduzimos uma reunião com todo o grupo e acordamos como o trabalho que será realizado durante o ano, estabelecemos o sigilo do que nos é dito, a importância de falarem abertamente conosco, quais atividades serão realizadas e o cronograma anual.
As demais reuniões coletivas têm como objetivo escutar as demandas coletivas e elas acontecem quatro vezes por ano. Nela enfatizamos a cooperação entre os diferentes anos da residência, facilitamos a troca de experiência entre eles, escutamos as queixas coletivas e encaminhamos possíveis soluções a partir das sugestões feitas pelo próprio grupo.
Estabelecemos, ainda, um protocolo com aplicação semestral de dois instrumentos, a saber, a escala EVENT e o inventário HADS com algumas modificações. O EVENT é um instrumento psicométrico que avalia a vulnerabilidade ao estresse no trabalho e divide sua análise em três fatores (clima organizacional, pressão no trabalho e infraestrutura/rotina) através de uma escala de likert. O HADS é um inventário também baseado em uma escala de likert que avalia depressão e ansiedade no contexto hospitalar, já utilizado e padronizado para o Brasil.
Esses instrumentos balizam o trabalho e tem como objetivo monitorar os níveis de estresse dos residentes. As aplicações são coletivas e nas semanas seguintes a aplicação e correção realizamos as devolutivas de forma individualizada com duração de trinta minutos, onde não apenas apresentamos os resultados dos instrumentos, mas fazemos um levantamento qualitativo de como está a vida do residente e traçamos possíveis estratégias para minorar o estresse com o objetivo de auxiliar na condução de questões pontuais de cada um deles de acordo com o momento em que estão.
Realizamos também duas conversas individuais de acompanhamento de trinta minutos com cada residente, objetivo é abrir espaço para que cada um deles possa expor temas e demandas que não se sentem à vontade em falar no grupo. Objetivamos também um contato mais próximo com eles e detectar possíveis casos em que o encaminhamento para atendimento psicoterapêutico se faça necessário. Esse momento tem o desenho geral de uma escuta psicológica, sem caráter terapêutico, entretanto eventualmente em um momento especialmente delicado também fazemos atendimentos individuais fora da residência e nesses casos encaminhamos para atendimento psicológico com outros profissionais.
Um último aspecto do trabalho desenvolvido junto aos residentes são os grupos informativos, eles têm como objetivo apresentar temas relevantes e de interesse para os residentes. São apresentações e discussões coletivas com temas variados como por exemplo: comunicação de má notícia, síndrome de burnout, aspectos psicológicos ligados à residência médica, gestão do tempo, entre outros. Esse trabalho é pensado especificamente de forma a atender algumas demandas práticas que os residentes possam apresentar no percurso da sua formação.
A recepção ao serviço de psicologia por parte dos residentes foi excelente. Prontamente o grupo identificou a importância do trabalho e a necessidade de um espaço para falar e compartilhar experiências e angústias. Os níveis de vulnerabilidade ao estresse e a alguns sofrimentos psíquicos específicos, como ansiedade e depressão dos residentes, tiveram melhorias significativas depois da implantação do serviço, o que foi aferido através dos instrumentos quantitativos e das entrevistas coletivas e grupais.
OS PRECEPTORES
Vetor indispensável na formação dos residentes, os preceptores também fazem parte do escopo de trabalho do serviço de psicologia. Realizamos pelo menos duas reuniões anuais com os preceptores para ouvirmos suas impressões sobre a curva de aprendizagem dos residentes, as dificuldades que enfrentam, sugestões de melhoria do funcionamento da residência, decisões e dúvidas que possam surgir no processo. Além disso, as mentorias, apresentações expositivas sobre temas de interesse dos preceptores e sugestões retiradas das falas dos residentes, também são pautas dessas reuniões.
Essas ações resultaram em um suporte para o grupo de preceptores com uma melhoria na mentoria e a definição de cronograma fixo de aulas para os residentes e a implantação de eixos temáticos nas aulas teóricas e de simulação que acontecem regularmente uma vez por semana.
A COORDENAÇÃO E O SETOR ADMINISTRATIVO DA RESIDÊNCIA
Por fim, o serviço de psicologia também atua junto a coordenação e o setor administrativo da residência. Realiza-se, pelo menos, uma reunião anual, onde nela também participam a preceptoria e tem como objetivo traçar o planejamento do ano subsequente. São discutidas as dificuldades encontradas pelos residentes e preceptores, as ações realizadas pelo serviço, sugestões de melhorias pedagógicas e de funcionamento.
As mudanças de cronograma, a implantação dos eixos temáticos de aulas fixas e outras ações só foram implementadas depois de discutidas e acordadas nessa reunião que teve como objetivo principal validar as mudanças e, como dito anteriormente, realizar o planejamento anual.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Estudos têm demonstrado que a implementação de Programas de Assistência aos Médicos Residentes produz uma melhoria tanto na qualidade da capacitação profissional, em termos de lidar com o estresse do treinamento, como também na qualidade de vida pessoal, com um melhor relacionamento com os pacientes (Silva, 2016).
O trabalho realizado junto à residência de medicina de emergência caminhou pari passu ao que indica a literatura e colheu resultados importantes não apenas em termos de mudança de estrutura da própria residência, como na melhoria da qualidade de vida dos residentes, principal foco de atuação.
Os dados quantitativos, dos instrumentos utilizados, e os qualitativos, acessados através das falas dos residentes, levantados durante esses quatro anos de trabalho demonstram essa realidade e apontam uma importante vereda para a qual as residências de uma forma geral, e principalmente as de emergência, deveriam se voltar: a implantação de um serviço de psicologia permanente em suas atividades.
REFERÊNCIAS
Bing-You, R. G (1993) Anxieties of entering first year residents. Academic.Medicine 68: 90.
Menville L. J, Allen B. (1993). The Effect of the Depression on Radiology. Radiology; 20 (4): 313-315. Disponível em: http://radiology.rsna.org/content/20/4/313.extract
Nogueira–Martins, L. A. (1994) Residência Médica: um estudo prospectivo sobre dificuldades na tarefa assistencial e estresse. Tese de doutoramento defendida na UNIFESP/EPM, São Paulo.
Pereira, A.M.T.B. (2010) Bournout: Quando o trabalho ameaça o bem-estar do trabalhador. 4a edição, São Paulo: Casa do Psicólogo.
Rudner, H. L (1985) Stress and coping mechanism in a group of family practice residents.The Journal of Medical Education. 60: 564-6.
Silva, G. C. C. da. (2016). Manual de apoio psicológico ao médico residente. São Paulo: Prospectiva. Disponível em: http://www.soupro.com.br/web/index.php/livros/manual-de-apoio