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ARTIGO ORIGINAL

Correlação entre a distribuição de UPAs e a taxa de mortalidade por choque (CID R57)

Átila Gonçalves Bispo Santos; Fabrícia Oliveira Guimarães; Lucas Firmo Araújo; Manuela Souza Neves da Rocha; Maria Rita Azevedo Coutinho Silva; Nathilla Fernanda Ribeiro Coqueiro; Rafaela Leal Déda Gonçalves; Sindi Tereza Rocha de Lima

DOI: https://doi.org/10.5935/2764-1449.20240013

Resumo

O choque é uma das condições clínicas mais complexas em emergência médica e medicina intensiva, tendo em vista que apresenta uma alta prevalência e altos índices de letalidade quando não abordado de maneira correta e em um tempo hábil. Porém, é de suma importância que sejam diferenciados os tipos existentes e suas abordagens. Tendo em vista as complicações geradas e a necessidade de um atendimento adequado, o artigo tem como objetivo avaliar o número de internações e óbitos por choque e a quantidade de Unidades de Pronto Atendimento (UPA) distribuídas nas regiões do Brasil, no intuito de verificar se a quantidade de infraestrutura básica influenciará no desfecho do paciente ou não. Para a obtenção dos dados sobre a associação levantada em questão, foi necessário analisar o banco de dados do Sistema de Informações TABNET e CNES do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS), selecionando pacientes de todas as faixas etárias que foram a óbito por choque (CID R57), seja por condições ambientais, como acidentes de trânsito, ou de trabalho no período entre dezembro de 2016 a dezembro de 2020. Apenas a Região Sul apresentou redução na taxa de mortalidade com uma melhor distribuição de UPAs, nas demais regiões, o aumento destas unidades de saúde por habitantes não se traduziu em uma atenuação na quantidade de óbitos. Portanto, conclui-se que não há correlação entre a ampliação das UPAs no território nacional com a redução da taxa de mortalidade.

INTRODUÇÃO

O choque é definido como uma síndrome caracterizada pela redução considerável da perfusão tecidual sistêmica de etiologia variada, tendo como causa principal a hipóxia prolongada, que pode levar a morte celular, lesão de órgãos-alvo, falência múltipla de órgãos e morte1. Os eventos de choque são classificados em quatro principais tipos que levam em consideração o perfil hemodinâmico, sendo eles: hipovolêmico, cardiogênico, obstrutivo e distributivo2. Por apresentar etiologia variada, acaba sendo uma condição bastante comum, respondendo por cerca de um terço das internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI)3.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a sepse mata 11 milhões de pessoas a cada ano e incapacita outros milhões. O choque séptico é o exemplo clássico, mais importante e mais prevalente do choque distributivo, levando a altas taxas de mortalidade, que variam entre 20-50%4. Já o trauma, de acordo com a OMS, é responsável pela morte de 9 pessoas por minuto no mundo, sendo que apenas de acidentes automobilísticos, no Brasil no ano de 2015, foram registradas 37.306 mortes5. O trauma assume um papel importante nos pacientes em choque hipovolêmico. Durante as últimas décadas, a hemorragia grave por trauma assume um dos primeiros lugares entre as causas de morte, acarretando grande perda social, sendo os jovens os mais afetados 6.

O prognóstico dos eventos de choque relaciona-se com presença de enfermidade preexistente ou complicante e tempo decorrido entre o início e o diagnóstico. Depende da causa base e da prontidão e adequação da terapia, podendo ser fatal caso manejado de forma incorreta7. Tendo em vista que o manejo em tempo hábil do paciente em choque é algo imprescindível para o prognóstico, é de suma importância que exista uma avaliação adequada. Dessa forma, é necessário que a equipe seja conduzida por um profissional capacitado. Em qualquer suspeita de caso de choque, o diagnóstico deve ocorrer ao mesmo tempo em que a ressuscitação. É indispensável uma sistematização do atendimento, contando com suporte material e profissional, tendo como objetivo corrigir a perfusão tecidual e evitar lesões adicionais para o paciente. Um exemplo claro disso seria a abordagem adotada para o choque anafilático, que conta com o uso de adrenalina e anti-histamínicos para o resgate do paciente.

As Unidades de Pronto Atendimento (UPAS) estão diretamente ou indiretamente ligadas à administração pública, sendo classificadas através dos seus portes e divididas em: porte I, II e III. Analisando as equipes e estruturas associadas a cada porte, é observado: na categoria médica, predominam os clínicos gerais e pediatras, o que qualifica a UPA como um estabelecimento de atendimento clínico. Nas UPAs de porte II e III, é possível encontrar profissionais nas áreas de odontologia e serviço social. Infelizmente, existem sensíveis e flagrantes problemas de infraestrutura, segurança, recursos humanos, remuneração e gestão quando pensamos nas Unidades de Pronto Atendimento. Todas essas problemáticas influenciam diretamente no atendimento e prognóstico do paciente8. Outrossim, é válido salientar que as UPAs são, muitas das vezes, os primeiros locais a receberem um paciente em estado grave, a exemplo do choque, uma vez que os pacientes chegam nesses serviços de saúde, seja por meios próprios, seja regulado pelo SAMU.

Desse modo, o presente estudo tem por objetivo analisar a correlação entre a taxa de mortalidade por choque e a quantidade de Unidades de Pronto Atendimento distribuídas nas regiões brasileiras, no intuito de verificar se a quantidade desses estabelecimentos de saúde influenciará na mortalidade por choque.

 

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo ecológico exploratório. Os dados epidemiológicos foram obtidos no banco de dados do Sistema de Informações TABNET e CNES do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS), Sistema de Informação Sobre Mortalidade (SIM) e IBGE no endereço eletrônico https://datasus.saude.gov.br/informacoes- de-saude-tabnet/, acessado entre 11 de outubro de 2022 a 11 de abril de 2023. Os dados coletados foram sistematizados e agrupados no software Microsoft Excel 2019. Foram calculadas as taxas de mortalidade e densidade de UPAs por região, sendo demonstrados em tabelas e gráficos.

Foram selecionados pacientes de todas as faixas etárias que foram a óbito por choque (CID R57), seja por condições ambientais, como acidentes de trânsito, ou de trabalho. Foi levado em conta todas as raças e ambos os sexos, nas cinco regiões administrativas do Brasil, nos períodos de 2016 a 2020. Como o objetivo da pesquisa é analisar e comparar a distribuição de UPAs no território nacional e a quantidade de mortes por choque, foi necessário quantificar as UPAs nas regiões do Brasil entre os anos de 2016 a 2020, utilizando como mês de referência para cada ano o de dezembro, visto que possibilita a informação mais atualizada durante o período de coleta de dados. Foram excluídos casos de óbito por choque após atendimento eletivo ou outra área que não tivesse vínculo com áreas da saúde (domicílio e via pública). As variáveis coletadas foram mortalidade por sexo, local de ocorrência, ano de atendimento e tratamento de choque em estabelecimentos do SUS.

Os dados foram utilizados para a construção de duas tabelas demonstrando a relação entre o número de UPAs a cada 1 milhão de habitantes e a associação entre a taxa de mortalidade por choque (R57) por 100 mil habitantes ao longo dos anos selecionados. A correlação entre as variáveis foi calculada pelo coeficiente de Pearson. Este coeficiente varia de -1 a 1, quanto mais próximo estiver de 1 ou -1, mais forte é a associação, quanto mais próximo estiver de zero, mais fraca é a relação entre as duas variáveis. O coeficiente negativo expressa uma relação inversa entre as duas variáveis.

 

RESULTADOS

No período de estudo, evidencia-se na Tabela 1, ainda que de forma modesta, um maior investimento na área de saúde no território nacional com o avançar dos anos, uma vez que o número de UPAs conseguiu ultrapassar o crescimento populacional de cada região brasileira.

 

 

Embora as regiões Sudeste e Nordeste apresentaram os maiores índices de mortalidade por choque em relação às demais - com acréscimo superior a 30% e 35%, respectivamente, quando comparamos os anos de 2020 com o de 2016 – (Tabela 2), a proporção do número de UPAs por milhão de habitantes apresentou um crescimento inferior, quando comparadas às outras regiões nacionais, com exceção do Norte (Tabela 1).

 

 

Em contrapartida, o Centro Oeste e Sul, por sua vez, apresentaram declínio considerável da taxa de mortalidade por choque no período avaliado, sendo que esta primeira região obteve oscilações importantes dentre os anos, apresentando em 2020 valores superiores de mortalidade quando comparado aos três anos anteriores (Tabela 2).

Destoando dos demais resultados encontrados, a região Sul merece importante destaque, visto que, entre os anos analisados, foi a região que, proporcionalmente, conseguiu ampliar o índice de Unidades de Pronto Atendimento por habitante, além de mitigar a taxa de mortalidade por choque (Figura 1).

 

 

A Tabela 3 apresentou uma fraca correlação entre as variáveis.

 

 

DISCUSSÃO

Os dados obtidos neste estudo apontam que o aumento da distribuição do número de estabelecimentos de saúde no Brasil, nos anos de 2016 a 2020, não influenciaram na redução do índice de mortalidade por choque nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste. Todavia, a região Sul ganha destaque por apresentar queda na mortalidade no período avaliado. A região Centro-Oeste, por sua vez, entre os anos de 2016 a 2018, demonstra uma redução no índice de mortalidade, mas, no período subsequente, evidencia-se uma crescente nas taxas de mortalidade e no número de UPAs por habitantes.

É de suma importância que seja entendido que as alocações das UPAs não são feitas de forma aleatória, mas sim, respeitando características epidemiológicas e demográficas [9]. Como consequência, estas são implantadas em locais estratégicos para configuração das redes de atenção às urgências e emergências, com acolhimento e classificação de risco em todas as unidades, em conformidade com a Portaria Nacional de Atenção às Urgências - PNAU - criada em 200310. No entanto, as evidências sugerem que a correlação entre as UPAs e mortalidade depende de múltiplos fatores: atendimento retardado ou inadequado devido à imperícia de alguns prestadores de cuidados de saúde da linha de frente, aos recursos hospitalares limitados, e à escassez de sistemas para assegurar a aplicação das melhores práticas11.

Os dados encontrados ressaltam que o aumento físico de unidades pode não ter sido suficiente para atender aquela determinada população e acompanhar o crescimento populacional e sua maior predisposição ao choque. O índice de mortalidade está diretamente relacionado ao tamanho de uma determinada população12, corroborando assim com os dados observados no estudo que, de fato, o aumento de UPA não está relacionado com a queda nos óbitos por choque.

Outra vertente que chama atenção é a quantidade de médicos em serviço no Brasil a cada 1.000 habitantes, onde o ideal se baseia em 3,5 profissionais. Entretanto, de modo geral, a realidade se configura em 2,6, e essa realidade não é atribuída a todos regiões brasileiras. Segundo a pesquisa Demográfica Médica no Brasil 2023, o Norte e Nordeste são as regiões que mais apresentam diferença nessa média, onde a taxa cai para 1,30 e 1,6913, respectivamente. Dessa forma, a conjuntura de crescimento de estabelecimentos necessitaria de uma expansão adicional no número de profissionais capacitados e instruídos para resolução do quadro de choque, desde o primeiro contato do paciente até sua evolução. Além disso, a disparidade entre o número de médicos e pacientes a serem atendidos levam a uma superlotação nos serviços e, consequentemente, demora no atendimento. No estudo de Fernandes de 201414, é abordada a inconsistência acerca do conceito de urgência entre os profissionais e população, levando a piora no atendimento aos pacientes em quadros mais graves, que precisam de auxílio mais ágil, e a não garantia de uma terapêutica adequada.

Em contrapartida às outras regiões observadas no estudo, a Região Sul apresenta um declínio na mortalidade por choque, fato que pode ser justificado através de estudos que mostram o maior desenvolvimento da região nas áreas de tecnologia, comunicação e saúde, podendo assim ser atribuído ao melhor desempenho do cuidado 15. Ainda assim, um estudo de Macedo et al (2015)16 relata que na Atenção Ambulatorial e Hospitalar de Alta Complexidade, Referência de Média e Alta Complexidade e Urgência e Emergência, todas as regiões brasileiras ficam com indicadores extremamente abaixo da média. Neste caso, é necessária uma atenção prioritária neste aspecto, pois o achado demonstra que o cuidado com urgência e emergência em todo território nacional é insatisfatório, sendo necessárias a promoção de políticas públicas e implementação de investimentos adequados para essas instâncias.

Algumas limitações podem ser atribuídas a este estudo, entre elas a utilização de dados secundários e a possível subnotificação de casos, além do pequeno recorte temporal usado. Apesar disso, os achados revelam que, neste recorte temporal no Brasil, apesar da expansão no número de UPAs, a taxa de mortalidade por choque também aumentou na maioria das regiões brasileiras, refutando a hipótese inicialmente proposta de correlação inversa entre as taxas.

 

CONCLUSÃO

No período de 2016 a 2020, observou-se um aumento tanto das taxas de mortalidade por choque e de distribuição de UPAs por habitantes nas diferentes regiões do Brasil, com exceção da região Sul. O presente estudo não evidenciou uma tendência de melhor prognóstico com o aumento de UPAs distribuídas pelas regiões brasileiras, visto que não houve uma redução da taxa de mortalidade relacionada ao choque (CID: R57). É indispensável, portanto, uma futura análise no benefício do desenvolvimento de uma melhor qualidade assistencial e de investimentos adequados para alavancar os efeitos das UPAs em termos de redução da taxa de mortalidade por choque.

 

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